Colecção da Alfaia Agrícola de Estremoz (dá Deus nozes a quem não tem dentes)

RÉS DO CHÃO - Máquina debulhadora (Foto Correia)

A motivação próxima destas linhas é o artigo “Edifício do Museu da Alfaia Agrícola de Estremoz – Crónica de uma morte anunciada”, da autoria de Hernâni Matos (HM), publicado em suporte de papel no jornal Ecos (23.7.2010) e em suporte electrónico nos blogues “Do tempo da outra senhora” e “Estremoz Net”.
Em primeiro lugar devo fazer uma declaração de interesses: fui fundador da Associação Etnográfica e Cultural de Estremoz (ETMOZ), da qual posteriormente me afastei, por entender que a sua actividade se desviou da finalidade que a tinha motivado e para a qual tinha sido constituída – a preservação, divulgação e desenvolvimento da Colecção da Alfaia Agrícola de Estremoz (CAAE).
No período em que integrei esta associação elaborei, juntamente com Ruy Zagalo Pacheco (entretanto falecido), um primeiro inventário do espólio que constituía a colecção, o qual deu origem à edição de um catálogo descritivo. A importância deste trabalho, que realizámos gratuitamente, decorria:
1º da necessidade de se conhecer, com precisão e objectividade, a composição do espólio existente.
2º dispor de um instrumento que permitisse a elaboração de candidatura(s) a fundos comunitários, no que respeita a medidas direccionadas para o património museológico, que as havia e estavam a ser utilizadas por muitos outros museus de autarquias.
Também em conjunto desenvolvemos diversas diligências no sentido de ser estabelecida uma colaboração com o Departamento de História da Universidade de Évora, a qual nunca se chegou a concretizar por razões, da parte da direcção da ETMOZ, que desconheci.
Feita esta declaração, que adiante se entenderá o sentido, quero felicitar HM pela forma como coloca a questão do “edifício do Museu da Alfaia Agrícola”, directamente associada ao próprio conteúdo, a CAAE. Ou seja, equacionar a CAAE como um todo, em que continente (o edifício) e o conteúdo (o espólio) são objecto, simultâneo, de acção museológica, perspectiva que tenho defendido ao longo dos anos, e que parece só agora começar a colher adeptos.
Neste sentido, é pena que HM não tenha desenvolvido melhor aquilo que introduziu no seu artigo com o subtítulo “Marcos na história de um edifício”. Penso que se HM pretende contribuir para a (re)construção da(s) memória(s) daquele imóvel, não deveria limitar-se à referência de apenas alguns tópicos.
E, em relação a estes marcos / tópicos, gostaria de fazer algumas considerações, sobretudo no que respeita aos anos mais recentes.
Em primeiro lugar, o protocolo estabelecido entre a CME e a ETMOZ, em 1996, em relação ao qual sempre me opus, posição na qual estive isolado.
As razões eram obvias: por um lado a ETMOZ nem sequer tinha meios próprios para assegurar o seu normal funcionamento, quanto mais para assumir a gestão do “Museu da Alfaia Agrícola” (edifício e espólio).
Depois, a própria legalidade do protocolo, que considerei de duvidosa, já que uma situação seria protocolizar bens que eram pertença de uma das entidades envolvidas, nomeadamente a CME, e outra era fazê-lo com bens que apenas lhe estavam confiados – parte da colecção é constituída por peças em depósito, ou seja, diversos particulares confiaram à CME, e só a ela, a conservação, preservação, exposição e mais acções inerentes à sua musealização.
Por último, o protocolo, tal como foi elaborado e estabelecido, dava um sinal de que a autarquia declinava a sua responsabilidade em relação a espólio tão valioso, bem como à conservação do imóvel, situação tanto mais caricata quanto, sendo este arrendado pela CME, e necessitado, já na altura, de intervenção, quer ao nível da cobertura (telhado), quer ao nível das paredes exteriores (incluindo janelas e portas), nunca foi accionado um processo de obras compulsivas, permitindo canalizar o dinheiro das rendas para as intervenções necessárias, processo este que teria que ser da iniciativa da autarquia.
Porque não foi feito? Por desinteresse, por apatia, por ignorância?... se calhar um pouco de tudo.
Um segundo comentário ao artigo de HM, é para aquilo que ele considera que foi a acção do Director do Museu Municipal: “De salientar que ao longo do processo de degradação o Director do Museu (Municipal) e o pessoal de apoio foi incansável, tendo feito tudo o que lhe era humanamente possível para travar essa degradação”.
Confesso que não sei o que é que HM entende por “humanamente possível”. No entanto sei o que se deveria ter sido feito, e até pensei que teria sido feito, dado ser tão elementar, mas que afinal não se fez.
As condições no interior do edifício não eram todas iguais, quer entre os três pisos que o constituem, quer nas diversas divisões de cada piso. Assim: o terceiro piso aconselhava a sua total desocupação por questões de segurança e de condições ambientais; nos outros dois pisos (rés-do-chão e 1º andar) teria sido possível estabelecer duas áreas distintas – uma para reserva (que nunca chegou a ser constituída apesar de constar em relatórios e estudos anteriores) e uma área de exposição, aberta ao público sem condicionalismos.
E a partir de 2006, quando a circulação de pessoas corria sérios riscos? Tratando-se de um edifício com espaços amplos e praticamente sem portas, não teria sido possível colocar rede de capoeira nos sítios de passagem, para evitar a sua transformação num imenso pombal com o que isso implicava / implicou em termos de degradação do espólio?
E em relação às peças mais volumosas, como por exemplo debulhadoras, locomóvel, diversos carros de tracção animal, trilhos, arados, gadanheiras, etc…, não teria sido possível a sua cobertura com uma tela, ou até mesmo plástico, como o que se cobrem as alumiadas de feno e fardos de palha no campo?
E em relação às peças de menor dimensão, que se mantiveram anos consecutivos pendurados nas paredes, em contacto directo com as mesmas, não teria sido possível construir algum mobiliário simples para a sua conservação, cuja execução estaria perfeitamente ao alcance dos serviços da autarquia, bastando para isso fornecer informação adequada?
São soluções técnicas, e friso o termo técnicas, de baixo custo, mas que parece que já não seriam “humanamente possíveis”, embora tivessem evitado estragos significativos, conforme testemunhou a PSP aquando da averiguação do assalto ao imóvel verificado no passado dia 14 de Julho (ver notícia do “Brados do Alentejo”, de 22 de Julho)
E em relação a outras acções, nomeadamente de inventário e aquilo que HM tanto valorizou no seu artigo, e que eu subscrevo inteiramente: a(s) memória(s). Houve preocupação de recolher e/ou registar os testemunhos de antigos trabalhadores agrícolas que trabalharam com aquelas alfaias, e outros actores do mundo rural? É que, independentemente de discursos bem intencionados, estas pessoas vão desaparecendo, restando, depois, apenas os aspectos materiais dos objectos, com os quais, em exclusivo, não é possível organizar um discurso expositivo.
As questões que aqui levantei não têm por objectivo censurar seja quem for, mas chamar a atenção para o que se podia/pode ser feito em prol do núcleo museológico da Alfaia Agrícola, incluindo aqui quer a colecção quer o imóvel, para que não se cometam os erros do passado e se mude de atitude (para que se considere a CAAE como património que é e não como velharias, como parece que tem acontecido), tanto mais que alguns dos actores actuais com responsabilidade na matéria são os mesmos do passado recente.

Estremoz, 8 de Setembro de 2010
Pedro Nunes da Silva

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